quarta-feira, 3 de setembro de 2014

A Militante

Pra moça do primeiro andar de alguns edifícios, já era sabido que felicidade plena não teria, por ser inexistente. Não ela, mas a felicidade. Mesmo ingênua, ela achava que havia algo errado no mundo, na religião e nas pessoas que ela considerava malvadas por a machucarem com palavras e as vezes, sem nada concreto, apenas sentimentos desconectos ao dela. 

Ela, que recentemente percebeu que sempre viveu no primeiro andar e considera isso uma simbologia interessante, quando criança era triste sem saber o porquê. Parecia tudo fora de lugar pra ela. A família a achava sentimental demais. Na escola ela nunca foi popular, sempre teve dificuldade com as amizades. Era rejeitada pelos grupos e muitas vezes, ela até gostava, precisava ficar só.

Gostava de ler livros de romance, mas não era o príncipe que a encantava, eram as emoções que ela captava, muitas vezes, focava nas lágrimas. Viajava nas descrições das ruas, dos parques, das cidades e das paisagens. As vezes, ela achava que já conhecia Londres e pensava no inverno e nas folhas secas e amarelas no chão. Não se interessava pelos acontecimentos reais passados nos telejornais. Quando adolescente, se escondeu embaixo das cobertas todas as tardes. O tempo que podia se esconder do mundo, se escondia. 

Aos 14 anos, ela começou a se posicionar em defesa dos trabalhadores em discursos timídos com o pai depois de ler a apostila de história. Ela ia e vinha do real a fantasia. Se perguntava: "Se deus criou todas as coisas, quem criou deus?" Quando ela pensava alto, alguem se indignava e dizia: -"Ela não é o que parece, mas não sei o que ela é." Nem ela sabia ainda o que era.

Na adolescência ela não se informou sobre muitas coisas, mas era uma sentimental observadora. Observando, ela foi fazendo suas escolhas. Quero isso... Não quero isso! E nessa observação sentiu que precisava de conhecimento. Não queria ser como as vizinhas, a mãe, as tias... decidiu que não precisava ser 'isso'!

Colocou sua vida na contramão de todos a sua volta. Encontrou pessoas que falavam sobre história pra ela e ela podia ficar horas e horas ouvindo sobre o renascimento e as revoluções. Se indignava com a atenção que essas pessoas davam a ela como se ela não merecesse. Era insegura e tímida. E todos que olhavam pra ela, não viam nada além de um futuro previsível para os não pensantes. Ela mal falava, o negócio dela era ouvir. Embora ela também gostasse de falar, não era com todos, ela selecionava.

Ela queria um mundo diferente, mas era calada e quem a cercava achava que revolução tinha que ser gritada. Mas o que ela queria mesmo, era revolução interna. Achava os discursos coerentes, bonitos. Mas não sonhava em discursar. Sonhava viver... aplicar as ideias revolucionárias. 

Por ela não confiar em si mesma, deixou pessoas dizerem de diferentes formas que era incapaz. Se ela produzia algo, as apostas eram que a produção era de outro. E quando se manisfestava dizendo que era ela... O espanto! Alguns "brincando", a chamavam de burra. As poucas vezes que ela se manifestava com uma observação ou complemento ao assunto que era visto como "intelectual", todos faziam festa, como se estivessem comemorando os primeiros passos de uma criança. Ela sabia como a achavam 'pouco'.

Um dia, disseram  pra ela, que ela não era boa parceria, talvez, apenas para uma conversa esporádica num bar. Ela sentiu forte essas palavras, mas aceitou como recomeço, mudança de ciclo. Se permitiu novas amizades, amores, emoções e realizações com apenas sua assinatura, sem intervenções.  

Seguiu com seus projetos de revoluções internas e sentia que contribuia de forma delicada onde atuava. Delicada, mas não apagada. Mudou tudo. Sua casa já não era a mesma, o telefone também não. No ciclo novo ela encontrou compreensão de si mesma e da amizade que não a queria apenas para a mesa de bar, era pra tudo e pra todos os momentos, bons e ruins.

Ela não esperava felicidade, mas já sabia como era andar com os ombros leves e ver a vida se movimentar. Pra ela, viver e vivência é militância maior que qualquer discurso revolucionário. Pra ela o pensar voltado pra si e suas ações, além de contagiar os próximos e incomodar alguns, gera movimento e movimento é produção e produção tem resultados que podem impactar. 

Ela tem momentos de alegria quando pensa que as palavras podem ser ditas sem abrir a boca. E quando ela pensa que as mudanças são gradativas ela conclui que pode começar por ela. Porque pra ela, ser militante é estar disposto a morrer por uma causa e ela está disposta a morrer todos os dias pra se refazer melhor e melhor. Assim, ela mantém viva a esperança de revolução, mesmo sabendo que só poderá vê-la em si mesma. 


Élida Regina Pereira